fevereiro 15, 2015

«A segunda libertação» - Boaventura Sousa Santos

A ortodoxia sabe que o problema da Grécia é o problema da Europa e que a sua solução só poderá ser europeia.

A recente vitória do Partido Syriza na Grécia teve o sabor de uma segunda libertação da Europa. A primeira ocorreu há setenta anos, quando os aliados libertaram a Europa do jugo alemão nazi e puseram fim ao horror do holocausto. Um dos países que mais sofreu por mais tempo com a ocupação nazi e suas consequências foi a Grécia. A geoestratégia dos aliados fez com que à libertação se seguisse uma guerra civil para impedir que os patriotas comunistas e seus aliados chegassem ao poder. Num contexto democrático, e ante um poder alemão, agora económico e não militar e disfarçado de ortodoxia europeia, os gregos voltam a revelar a mesma coragem de enfrentar adversários muito mais poderosos e de mostrar aos povos europeus, que sofrem as consequências do jugo dessa ortodoxia, que é possível resistir, que há alternativas e que é preciso correr riscos para que algo mude sem tudo ficar na mesma.

Tenho escrito que o capitalismo só é inflexível até sentir a necessidade de se adaptar às novas condições. Digo capitalismo e não União Europeia porque neste momento os interesses do capitalismo global são os únicos que contam nas decisões dos órgãos decisórios europeus. Se esta hipótese se confirmar, o risco assumido pelos gregos foi calculado e é possível que os portugueses, os espanhóis, os italianos e, em geral, todas as formigas europeias da fábula de Esopo possam beneficiar do aperto a que serão sujeitas as cigarras do norte e do sul (o sistema financeiro, os bancos e as oligarquias). Para já, estamos num momento alto de política simbólica, comunicação indirecta, suspensão informal das regras de jogo, não provocação do "adversário" para além do necessário, fronteira ambígua entre o negociável e o inegociável. Mas a ortodoxia tremeu, e o tremor da sua bancada subalterna foi, como era de esperar, o mais patético. No caso português, indigno.

A Europa está num momento de bifurcação – ou se desmembra ou se refunda. Pode levar anos, mas não voltará a ser a mesma. É um momento de desequilíbrio pós-normal em que mínimas oscilações podem provocar grandes mudanças num ou noutro sentido. Eis os desafios. Primeiro, contra a ortodoxia, sempre afirmei que a dívida grega (ou portuguesa) era europeia e como tal devia ser tratada. A ortodoxia só agora se dá conta disso. Sabe que o problema da Grécia é o problema da Europa e que a sua solução só poderá ser europeia. Vai começar pela negação da realidade e "demonstrar" a especificidade do caso grego, mas a realidade vai gritar mais alto. Será fácil convencer os portugueses de que o cemitério em que se converteram as urgências hospitalares é o produto de um surto anormal de gripe que entretanto ninguém viu? Segundo, as políticas de austeridade provocam mais tarde ou mais cedo reacções e é bom que elas ocorram por via democrática. Foi assim na América Latina, onde a austeridade dos anos noventa do século passado levou ao poder governos progressistas, para quem a bandeira principal era a luta contra a austeridade e a promoção do bem-estar das maiorias empobrecidas. Na Europa, pese embora o triunfo do Syriza e o possível triunfo do Podemos em Espanha, há um elemento adicional de incerteza. Ao contrário da América Latina, há também partidos de direita e de extrema direita que se dizem contra a austeridade. O fracasso das soluções de esquerda não conduzirá necessariamente a soluções de centro-esquerda ou centro direita. É por isso que a Europa nunca mais será a mesma.

O terceiro desafio são os EUA. A União Europeia tem vindo a perder autonomia em relação aos desígnios geoestratégicos dos EUA, como mostram o maior envolvimento na NATO, a nova guerra fria contra a Rússia, a parceria transatlântica de livre comércio, que desequilibra a favor das multinacionais norte-americanas os processos decisórios nacionais e europeus. Os grandes media querem-nos fazer querer que a Grécia é uma ameaça maior que a Ucrânia, mas os europeus sabem que, pelo contrário, na Grécia, a Europa está a fortalecer-se, na Ucrânia, está a enfraquecer-se. A Grécia deu um primeiro sinal de que não quer ser parte de uma Europa refém da guerra fria. Será esta posição parte da negociação? Até quando pode a UE ser lobo em Atenas e cordeiro em Washington?

Boaventura Sousa Santos

Artigo de opinião na revista «Visão» disponível aqui.

1 comentário:

  1. Curiosa a posição geográfica e daí estratégica destes dois países, nos flancos desta Europa, mais dos interesses pontuais do que dos estratégicos.
    A Grécia, na sua casota de cão de guarda, frente à gigantesca Turquia, entalada a Norte pelos eternos vespeiros Balcânicos, e nós na frente Atlântica que a tecnologia transformou num charco sem interesse; nem a base dos Açores tem especial serventia perante drones que conseguem ser comandados a milhares de quilómetros a partir de qualquer base em solo Norte Americano.
    É óbvio que a Grécia sabe olhar para o mapa, sabe que está no olho do furacão, com a Ucrânia logo ali Sabe também que a "dívida" é uma treta a que urge pôr de imediato fim, não no sentido dos perdões ou programas, mas sim na base da gestão, e isto porque estão sobrecarregadas com essa anormalidade a que se chamam "juros".
    Acabar com os juros da Banca tal como acontece na Banca Árabe é uma questão para outros argumentos, mas por exemplo, só há pouco tempo é que a Inglaterra acabou de pagar dívidas do tempo de Napoleão Bonaparte. O mesmo acontece por todo o mundo, por cá Guterres também acabou por liquidar uma dívida que vinha do tempo dos reinados e que passou todo o Estado Novo.
    O juro é de facto um aberração que os Judeus inventaram mas que faz escola por quase todo o mundo, Na verdade o juro é de facto algo que não corresponde à criação de riqueza: num determinado contexto a quantidade de dinheiro é sempre a mesma e quando se impõem juros está-se a criar uma virtualidade que à escala de Países leva às situações que conhecemos.
    Uma Europa perdida em umbigos, a fazer uma pressão incomportável sobre os seus membros vai acabar por desmoronar-se perder-se toda no mesmo caldinho azedo.
    Esta gente está como diz o outro, na aldeia e não vê as casas...

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