março 26, 2013

A posta nos mal a(r)mados


É tudo muito bonito quando pensamos a Democracia e a queremos acreditar indestrutível por ser o mais perfeito dos regimes que conhecemos ou experimentámos na pele até à data. Contudo, seja democrático ou ditatorial, qualquer regime só perdura não enquanto tiver o controlo da respectiva população mas sim durante o tempo que durar o seu estado de graça junto das estruturas militares ou militarizadas que o possam assegurar.

Quando Otelo Saraiva de Carvalho, Vasco Lourenço e outras figuras de menor destaque mediático ligadas à s hierarquias militares engrossam o discurso e agitam o papão do golpe militar, da tomada do poder à bruta, a maioria das reacções são de escárnio perante as pessoas e suas aptidões e não de análise acerca das respectivas motivações.
Os militares fizeram o 25 de Abril de 1974 ou ainda estaríamos hoje, povo de indecisos, a ponderar essa opção para derrubar um regime caduco qualquer.
Sim, havia uma resistência, uma minoria de antifascistas que se submetia à clandestinidade, ao exílio, à tortura ou apenas à indiferença dos seus pares num poder nada democrático que lhes dava voz apenas por comiseração ou por dar jeito um grupelho dissonante para transmitir uma fragrância de liberdade ideológica e de expressão.
Contudo, a maioria silenciosa, o rebanho, aturava como uma lei fundamental todos os abusos que o formato do Estado Novo fomentava com a imposição de uma estrutura assente em hierarquias sociais bem definidas, a um esquema quase feudal de gestão de um colectivo feito de indivíduos dependentes da sorte ou do azar no berço e, acima de tudo, da sua habilidade para se tornarem úteis à implementação de um qualquer modelo de autoridade que pudesse beneficiá-los e/ou aos seus.

Agora passo à parte da definição de prioridades de um novo rebanho, mais instruído mas nem por isso necessariamente mais esperto ou mais capaz de distinguir o certo e o errado, aquele que passa ao lado de episódios como o que motiva esta posta.
Um tenente do Exército Português foi detido por ter levado ao Laboratório Militar, para análise, uma amostra de comida estragada que alguns soldados se recusaram comer. Podem ler os detalhes aqui.
A decisão do Tribunal Administrativo que confirmou o acerto de tal punição assenta na pretensa deslealdade do tenente Gonçalo Corceiro perante os seus superiores.
Tomou a atitude certa mas não respeitou os códigos internos, a hierarquia, as regras que no entender daquele tribunal prevalecem sobre a constatação pura e simples dos factos: o tenente fez aquilo que tinha que ser feito, algo que a lógica diz dever prevalecer sobre quaisquer imposições de feudos mais ou menos institucionais e quem aplica as leis entendeu sobrepor a isso a violação dos tais preceituados militares.
O rebanho, tão lesto a peticionar contra a liberdade de expressão ou o abate de animais assassinos, nem reparou.

Se no parágrafo inicial fiz alusão ao mal-estar de que alguns militares vão sendo porta-voz e no segundo referencio o efectivo poder de que aquela estrutura usufrui para intervir, bem ou mal, sobre os nossos destinos, no terceiro chamo a vossa atenção para o facto de o absurdo poder gerar as condições para uma revolta que, acontecida no seio de quem detém as armas, nunca se sabe as proporções que pode assumir. Esse absurdo tanto pode provir de uma decisão judicial, porquanto acertada do ponto de vista formal, como do somatório de decisões absurdas por parte de um poder político legítimo do ponto de vista dos procedimentos democráticos mas tão errado como a História, portuguesa e mundial, já provou ser passível de acontecer.
O medo de uma intervenção militar, quiçá oportuna no entender de alguns mais desesperados mas sempre de último recurso para quem abraça a democracia e teme a imposição seja do que for pela força das armas, acaba por ser secundário perante as consequências da falta de razoabilidade nas decisões tomadas, a nível político ou judicial, a dissonância entre estas e a lógica que preside ao modelo de sociedade que (quase) todos defendemos e, acima de tudo, à indiferença generalizada para com todos estes sinais de uma insanidade colectiva que está a contribuir sobremaneira para um verdadeiro livre arbítrio por parte da elite com acesso a qualquer poder.

E agora esse desgoverno está a atingir patamares tão baixos que já destruiu a consciência crítica dos cidadãos, incapazes na sua maioria de prestarem sequer atenção aos sinais da demência que nos corrói a Nação pelos seus alicerces que incluem, na minha opinião, coisas tão elementares como um conceito de justiça universal que se sobreponha sem hesitar às regras de qualquer instituição que dela faça parte quando estas contrariem, em questões tão elementares como a saúde pública dos cidadãos, a ética e decência de que tantos suspiram a ausência e a apontam como um mal mas muitos mais (e tantas vezes os mesmos) tornam irrelevantes por não lhes prestarem a devida atenção.

Rendo aqui homenagem ao tenente Corceiro, ao cidadão Gonçalo, na proporção inversa ao que me apeteceria aqui dizer acerca dos que viram a cara para outro lado neste tipo de injustiças quando esse outro lado não passa de um conjunto de miragens e de fugas superficiais vocacionadas para entreter os cobardes e os acéfalos que preferem fazer de conta que nada há a fazer de concreto para combater a decadência moral que está a matar pela raiz a própria civilização ocidental e, sem dúvida, o seu próprio país.

1 comentário:

  1. Desconhecia essa episódio do tenente Corceiro. Não me espanta, porque passei por situações em que esse espírito de "o que é da tropa, fica na tropa" ficou bem claro para mim. Mas - lá está - revolta.

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