junho 15, 2012

«Negócios sociais, saúde, competição internacional» - Jaime Ramos

Perdeu-se a noção dos objectivos dos Estados, organizações saídas da sociedade civil, ao serviço da comunidade e das pessoas. Deixámos de discutir ideias e abandonámos as ideologias.
Discutem-se meios e recursos, esquecem-se objectivos e visões de futuro.
Gere-se o dia-a-dia e esquece-se que as nações não se podem limitar ao ritmo do imediatismo, sejam anos económicos, sondagens ou ciclos eleitorais.
A Pátria é muito mais do que uma sociedade anónima. Tem pessoas, língua, tradições. Tem território e história.
Um governo não tem de ser uma autoridade em gestão. O seu objectivo é o equilíbrio interno da sociedade facilitando o bem-estar e a felicidade das pessoas.
Os indicadores de macro economia são importantes mas o fundamental é a felicidade sustentável, o equilíbrio entre as pessoas, com menos desigualdade e maior respeito pela natureza.
Devemos criar uma colectividade com sucesso material mas também com valores morais, que garanta uma sociedade humanista, assente na liberdade e na fraternidade.
A economia actual parece estar numa permanentemente corrida de velocidade. Os mercados assemelham-se a montanhas russas, cheias de adrenalina. A sociedade deve viver com uma estabilidade diferente, que respeite as gerações. Nem os velhos são trapos para deitar fora nem os jovens produtos para colocar em armazém, à espera de melhores dias.
Perante as corridas de velocidade entre as empresas e os grupos financeiros, compete ao Estado perceber que a vida de uma nação se faz de décadas e séculos, que, contra os riscos de tensões, mutações bruscas e roturas, se constroem organizações que apostam na coesão social e na sustentabilidade.
Uma sociedade deve evitar convulsões graves, criando um Estado forte, solidário e fraterno, que tenha um forte terceiro sector como companheiro para os bons e maus momentos.
Há o sector público com os organismos dependentes da administração local, regional e central e as empresas cuja propriedade pertence ao Estado. O sector privado com fins lucrativos engloba a generalidade das empresas cujo fim é garantir o lucro e a remuneração de capital dos donos e accionistas. O terceiro sector é privado, não dependente do estado, englobando as organizações não governamentais sem fins lucrativos, desde as religiosas, misericórdias, fundações laicas, associações ambientalistas, mutualistas, cooperativas, colectividades desportivas e culturais.
Portugal tem um terceiro sector importante, com grande capacidade e longa experiência de actuação na área social, saúde e educação.
Neste sector é exigível que o Estado tenha uma grande intervenção para, de acordo com o sonho europeu, criar uma sociedade com elevado bem-estar social.
Na Europa é consensual a ideia de que compete ao Estado manter um sistema de educação, um sistema de saúde e um sistema de reformas/aposentações, que permitam uma sociedade humanizada.
Todos queremos que o Estado garanta que todas as crianças possam cumprir um período de escolaridade obrigatória, que impeça o analfabetismo.
Ao contrário dos EUA, todos os países europeus criaram sistemas que garantem a todos os cidadãos cuidados de saúde.
Na Europa um trabalhador, após uma vida de trabalho, com pagamento de impostos e taxas legais, sente-se com direito a que a sociedade lhe assegure uma reforma que lhe permita continuar a viver com dignidade, com um nível de vida semelhante ao que tinha enquanto trabalhava.
A sociedade europeia exige que o Estado crie serviços sociais de apoio a algumas necessidades dos indivíduos e das famílias, desde creches e residências para criança especiais, a lares, serviços de apoio domiciliário ou centro de dia para idosos.
Embora todo este conjunto de necessidades, na educação, saúde e acção social, exijam soluções assumidas pelo Estado é aceite que, a arquitectura de serviços que garantem estas funções, possa ser gerida por entidades privadas.
Não se pode confundir serviço público com serviço do Estado. Serviço público é diferente de negócio lucrativo, assenta no princípio do bem público, não no lucro privado.
As IPSS têm vindo a ser parceiras privilegiadas do Estado na prestação destes cuidados. Situação legitimada pelo facto de que algumas, particularmente as ligadas à Igreja, como as Santas Casas de Misericórdia, exercerem há séculos estas actividades, mesmo antes de o Estado ter estas preocupações.
Sendo instituições sem fins lucrativos são parceiras ideais para operar nestas áreas.
Infelizmente nos últimos tempos os Governos têm vindo a reduzir o campo de intervenção destas instituições abrindo estes sectores a entidades sem fins lucrativos.
Este tem sido um dos erros estratégicos cometidos, que compromete o crescimento na produção de bens transaccionáveis, desviando o capital com fins lucrativos para as áreas sociais.
Esta mudança foi muito evidente na Educação onde o Ministério alargou as respostas na área do ensino obrigatório através de empresas com fins lucrativos. Muitas das escolas do ensino obrigatório são propriedade de empresas lucrativas que operam com contratos com o Ministério.
Na saúde também os Governos têm vindo a privilegiar a entrada de empresas com fins lucrativos de que são exemplo as parcerias público-privadas na construção e gestão de novos hospitais.
A grande questão é que o Estado, ao privilegiar a entrada de empresas do sector lucrativo nestas áreas, tem cometido um erro estratégico.
O capital privado tem de procurar lucros, não se podendo limitar a ter dinheiro a prazo nos bancos ou a investir em acções. Os investimentos têm sempre risco mas os donos do dinheiro não gostam de o perder. De preferência deixam o risco para os outros.
Sempre que possível o dinheiro gosta de lucrar muito e rápido, em vez de se limitar a ganhar pouco e de forma lenta.
O capitalismo que investia a décadas de distância, como o que plantava sobreiros no Alentejo, a pensar nas próximas gerações, tem estado em extinção.
Os donos do capital gostam que as suas empresas tenham sucesso e apreciam bons negócios com o Estado, sem risco, com lucros garantidos.
O Estado paga mal, com atraso, mas paga sempre. O Estado cumpre os contratos e com frequência, para não dizer por norma, negoceia-os mal.
Nas negociações, a representar o Estado, estão funcionários ou políticos que não lucram directamente com o negócio enquanto, do outro lado da mesa, estão empresas que vivem do que ganham no contrato. É um jogo desigual, mesmo quando são pessoas honestas a representar o Estado, no qual os intervenientes têm motivações muito diferentes.
De um lado uma entidade pública, serviço, empresa ou organismo, representada por alguém que tem ordenado assegurado e que não perde nem ganha com o negócio. Do outro lado da mesa gente cujo nível de vida depende das vantagens que conseguir na negociação.
Muito mais desigual fica, com claros prejuízos para a comunidade, representada pelo Estado, quando a negociação é realizada por corruptos e corruptores. Quadros de corrupção que têm sido favorecidos e incentivados pela actuação da justiça portuguesa, com decisões judiciais a punir gente que não se deixou corromper e a desculpabilizar quem corrompe.
Desigualdade agravada quando o Estado se representa por pessoas “sérias” que quando terminarem as funções no sector público vão trabalhar, como prémio, para a empresa ou grupo com quem estiveram a negociar. Basta pensar na carreira de muitos políticos em Portugal para se ter a ideia da frequência com que se verifica.
O capitalismo assenta no desejo legítimo de ganhar dinheiro, transformando-se com frequência num jogo vicioso, que exige ganhar cada vez mais, numa espiral de ganância, que cega espíritos que julgávamos sensatos, como se demonstrou nas polémicas recentes ao redor da banca, em Portugal e no Mundo.
Ganhar muito e sem risco de perder é o máximo, no espírito ganhador de quem não suporta o insucesso, porque está na actividade para gerar lucros, de forma elevada e rápida, de preferência.
Criar uma empresa é sempre um risco, maior se ela está no mercado livre a concorrer sem beneficiar de protecção especial.
Ninguém garante a um empreendedor que o produto que vai produzir não seja igualmente produzido por um outro empresário. Este pode, por capacidade própria ou por beneficiar de melhores circunstâncias externas, produzir mais, melhor, com menor preço, criando graves dificuldades à concorrência.
Já li uma entrevista de um dos nossos maiores capitalistas que nem lhe passeava pela cabeça fazer um investimento industrial pois nada lhe garantia que um qualquer “chinoca”, expressão do próprio, não fizesse o mesmo muito mais barato… Este é um exemplo de falta de espírito de risco e de empreendedorismo, mais adequado a beneficiário de rendimento mínimo.
No mercado livre nada garante sucesso a um investidor que pode perder com o melhor negócio. Mesmo empresas adultas, com grande implantação e elevado know how no ramo, são frequentemente surpreendidas e arruinadas por novos concorrentes, mais ágeis e mais inovadores.
Estes riscos não se verificam em regime de condicionamento, como são muitos negócios com o Estado.
Se o governo faz um acordo com uma empresa para num determinado local criar uma escola, para responder à população existente, não vai incentivar a que, no futuro, apareça no local a concorrência de uma nova escola.
Se convenciona a prestação de serviços de saúde numa região com frequência não aceita acordos com novos concorrentes. O caso mais conhecido é o das farmácias, mas acontece o mesmo com clínicas, fornecedores de análises clínicas ou outros exames médicos.
Se o Estado faz uma parceria com uma empresa, para construir uma ponte ou uma auto-estrada, não é expectável que o Estado venha a negociar com outro grupo a construção de alternativas só para garantir que os clientes possam escolher o melhor serviço ou o melhor preço.
Não havendo concorrência, e havendo a garantia de ser o Estado a pagar a conta, estamos perante um excelente negócio, de risco mínimo. É capitalismo protegido, sem sujeição às leis do mercado livre.
É compreensível que um grupo empresarial goste destes negócios com o Estado, passando a viver da renda segura. Não são só os beneficiários do rendimento mínimo que vivem à custa do Estado…
É humano que os donos do dinheiro gostem destes negócios protegidos e movam influências para que gradualmente o Estado lhes crie áreas de negócio em outsourcing e em parcerias público-privadas.
Gradualmente foi criada a ideia de que o Estado gere mal e que por essa razão tem de passar a gestão para os privados. Se é verdade que o sector privado pode, com maior facilidade, implementar gestões eficientes, nada garante que o Estado não venha a pagar maiores facturas.
O sistema capitalista assenta na oferta e na procura, e na manipulação destas variáveis. Antes de ter sido posta à venda ninguém consumia Coca-Cola. Mas quando foi colocada no mercado iniciou um processo de publicidade que fez a procura disparar. Não era um produto necessário; passou a necessidade social para muitos jovens e populações “urbanas” a nível global.
Um hospital público servirá a sua população de acordo com a procura de cuidados e sempre reagindo com atraso às necessidades sentidas pelos seus utentes. Um hospital privado comportar-se-á como os produtores de Coca-Cola, gerando oferta, fazendo marketing para criar mais necessidades, mais pessoas a procurar serviços de saúde, porque lucra tanto mais, quanto mais serviços prestar.
A educação, a saúde e os serviços sociais são áreas que tradicionalmente e historicamente foram desenvolvidas por organizações não lucrativas que constituem o terceiro sector, com grande frequência dinamizados pela Igreja, dentro do espírito cristão de apoiar quem precisa. Destinavam-se a responder a necessidades, não tendo como objectivo inventar novas necessidades.
A economia social moderna não pode prescindir da bondade, da proximidade ao nosso próximo, do primado do cuidar do outro.

Jaime Ramos
Excerto do livro «Não basta mudar as moscas»

2 comentários:

  1. A grande desgraça desta gente é pensar nos seus interesses esquecendo-se de que a economia se rege pelos princípios dos vasos comunicantes. Não se pode esperar que o dinheiro posto a prazo nos bancos gere rendimentos se não houver na sociedade um acréscimo de valor que dê sentido material ao conceito de aumento de capital.
    O egoísmo absurdo leva a este estado de coisas em que os possuidores do capital, temendo perder o valor das suas posses, alimentam os ciclos em que eles sendo os primeiros perdedores, transferem as perdas para terceiros, salvaguardando-se momentaneamente, na ilusão dos náufragos que se põem na ponta do barco para salvar-se quando este está em pleno e irremediável afundamento.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E dão ares de serem pessoas extremamente inteligentes...

      Eliminar