março 01, 2008

A minha nona carta de trás da serra na revista Perspectiva

Triste ensina...

Olá,

Estou a escrever-te muito à pressa, que o tempo é pouco e tenho que fazer os «trabalhos de casa». São dez da noite e a minha mulher telefonou a dizer que está agora a sair da escola. Tem sido frequente este ano: eu e as nossas filhas jantamos e ela come depois qualquer coisa quando chega.
Já não me lembro do que é sairmos num fim-de-semana, porque precisa de estudar legislação e falta-lhe tempo para preparar aulas, testes… e depois corrigi-los. O tempo que passa na escola é ocupado com outras actividades... e reuniões aos montes.
Ela lá vai fazendo o melhor que pode mesmo que, como eu lhe digo, esteja praticamente a prescindir de ter tempos livres e a sacrificar a vida familiar. É que os professores têm uma característica que admiro: espírito de sacrifício. Como sabes, sou de uma família de professores e desde pequeno me habituei a ouvir os meus avós, os meus pais e os meus tios a falarem sobre irem “dar aulas para terras onde só se podia ir de burro”. Actualmente, mudou o meio de transporte mas a vida nómada mantém-se. Eu até acho que se devia dar a cada professor, no início da carreira, um kit com um burro, uma carroça, um cobertor e um cão. E, ao longo da carreira, sujeitam-se a situações e aceitam condicionalismos que noutras actividades seriam impensáveis. Há dias, em conversa com pessoas conhecidas casadas com professores, deram-me alguns exemplos. O marido da Mariazinha desabafa com ela ser “frequente as escolas não disponibilizarem os meios suficientes” para exercerem a sua actividade, sendo necessário adquirirem equipamentos e consumíveis que usam no seu trabalho. O Jorge Castro, que tem saudades de te ver por cá, acha que “propor a um professor que adquira um computador que vai utilizar como instrumento de trabalho, com acesso a uma bandinha larguinha, por preço ‘especial’ e condições ‘favoráveis’, é uma habilidade que não lembrava ao diabo” mas lembrou ao Governo. O Borges alertou que a mulher sempre teve necessidade de trabalhar em casa, além do horário que cumpre na escola e sem receber horas extraordinárias. Como disse o Pereirinha, “pode parecer um detalhe sem importância mas no Verão as famílias de professores só podem tirar férias na confusão do mês de Agosto, quando vai ‘tudo a monte’ para os destinos turísticos normais e os preços são mais elevados”.
“A isto”, lembrou a Filomena, “já estão infelizmente os professores habituados. Mas actualmente está a ser demais: congelamento de salários e de carreiras, alterações das regras de progressão com critérios que geraram injustiças e dos quais não foi permitido reclamar… e agora instalou-se o caos a meio do ano lectivo, com grande quantidade de legislação sobre o novo modelo de gestão, a avaliação dos professores e o novo estatuto do aluno, com várias lacunas e que estão a criar uma enorme confusão quanto a competências, leituras e implementações diferentes de escola para escola”. E fazer depender a avaliação de desempenho dos docentes do sucesso escolar e do abandono dos alunos? A Natália queixa-se da falta de sorte do marido, que "tenta sobreviver a uma turma de CEF's". CEF's?! Ela lá nos explicou que "são cursos para alunos especialistas em reprovações e com tendência para a asneira. É frequente ser alvo de ameaças, de agressões verbais e mesmo físicas. Sente-se entregue a si próprio. E será avaliado pelo desempenho deles". O Rogério estranha “se a ministra da Educação não se apercebe que criaram uma clivagem artificial entre professores, que se instalou o medo e um ‘stress’ tremendo”. Tive que lhe dizer que aos políticos não dá jeito ‘saber’. A Mariazinha perguntou: “O Ministério diz que quer valorizar a actividade lectiva – a nossa missão –, dignificar a profissão docente, promover a auto-estima e motivação dos professores mas… assim?! Se não dispõem dos meios e o tempo necessários? E se não podem preparar devidamente as aulas porque estão ocupados com burocracias?”
Tive que lhes dizer que o problema é o isolamento de cada professor e no receio de ‘dar a cara’, gerando frustração e uma revolta surda. Entretanto, como diz uma amiga professora, os familiares são «sofredores passivos». Como eu de passivo não tenho nem quero ter nada, até já pensei organizar uma Manifestação dos Esposos Revoltados de Docentes Abusados. Até aproveitava para te ir visitar...
É pena não estares connosco... e não estares casado com uma professora. Entender-me-ias melhor.
Um abraço deste que te estima,

Paulo Proença de Moura
Página on-line da revista «Perspectiva». Na secção das Crónicas estão disponíveis todos os meus textos anteriores.

Sem comentários:

Enviar um comentário